quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Discurso

Não tinha um adjetivo para o dia e desejei ficar triste.
Fui moer lembranças,
Remoê-las com a areia pobre mas grossa de minha desmesurada moela.
Em mim, tanto faz meu coração ou estômago,
Já que nem pra rezar eu sei partir-me.
Como quem junta espigas pro moinho,
Juntei uns cheiros de alho, de álcool, de sabonete,
Um cheiro-malva de talco, uns gritos,
Fezes que se pisou ao redor da casa com cheiro não tanto repudiável
podia-se limpá-las, mas não eram execráveis
a incúria colateral de vários pâncreas, o trypanosoma cruzi, várias cruzes no sangue, no exame,
na forma de levantar os braços e dizer:
“ Ó Pai, duro é este discurso, quem poderá entendê-los? “
Se abrisse um sol sobre esse dia incômodo,
Eu rapava com enxada os excrementos,
Punha fogo no lixo e demarcava mais fácil os contornos da vida:
Aqui é dor, aqui é amor, aqui é amor e dor,
Onde um homem projeta seu perfil e pergunta atônito:
Em que direção se vai?
É as vezes fazendo a barba ou insistindo no vinco de sua calça branca que ele quer saber.
É as vezes aparando as unhas, em nem sempre escolhidas horas,
Que ele tem a resposta.
Um adjetivo para o dia, explica.

Adélia Prado